Jornalistas&Cia 1494

Edição 1.494 - pág. 33 Falei ontem dos Natais cristãos e felizes da minha infância e juventude. Tava tudo muito bom, tava tudo muito bem. Mas esqueci de um outro Natal que teve um pouco de tudo: emoção, luxúria, autocrítica e uma ceia à base de um frango assado de padaria. O caso eu conto agora como foi. Eram 18 horas do dia 23 de dezembro de 1971 quando deixei o DEOPS de São Paulo, lá no Largo General Osório, depois de 30 dias de cana brava. Havia sido preso, no Dia da Intentona Comunista, na antessala da redação do Estadão, ainda na rua Major Quedinho, pelos capangas do Esquadrão da Morte do delegado Sérgio Paranhos Fleury. A acusação: organizar um partido clandestino para a derrubada da ditadura. O que era uma meia verdade. Para ser sincero, até abril de 71, tinha sido membro da Ação Popular. Como o Brasil é o país dos paradoxos, a AP nasceu na Igreja Católica e, depois de 1964, aderiu ao comunismo iugoslavo, ao comunismo cubano, passou pelo maoísmo e acabou socialista. Em abril daquele ano, cheguei à conclusão de que não chegaríamos a lugar nenhum com o Livro Vermelho dos Pensamentos do Presidente Mao (tinha até um livrinho desses, editado na China) e pedi as contas. Voltei para o jornalismo e fui acolhido, generosamente, pelo Estadão. O nome mais emblemático da AP foi o irmão do Henfil, o Herbert José de Souza – o Betinho – que, nos anos 80, mobilizou o Brasil numa campanha contra a fome. Tive o privilégio de conhecê-lo e, inclusive, de escondê-lo da repressão em 1970. Nos feriados de Finados, em 1970, cheguei a levá-lo para Santos, onde ele foi apresentado como sendo o “Waldemar” para meu pai. Bom, eram 18 horas do dia 23 dezembro e eu saí do DEOPS sem lenço nem documentos, nada nos bolsos ou nas mãos – era véspera de Tadeu Afonso n A colaboração desta semana é de Tadeu Afonso, que teve passagens por Cidade de Santos, A Tribuna, Estadão, Folha de S.Paulo, Jornal do Brasil, TVs Bandeirantes e Manchete, além de assessorias de imprensa de candidatos e partidos políticos, entre outras atividades. Ele publicou a história em sua conta no Facebook em 23 de dezembro e nos autorizou a reproduzir. Um Natal inesquecível Natal e a burocracia da repressão já havia fechado as portas. Documentos, cheques e dinheiro só me seriam devolvidos depois do dia 25. Ah, também chovia. Assim, o jeito foi fazer uma longa marcha até o Estadão, aonde cheguei encharcado e sem saber como seria recebido. A primeira pessoa que me viu quando entrei na redação foi o Flávio Galvão, que correu para mim e me levantou nos braços. Depois, vieram o Eduardo Martins, o Oliveiros Ferreira, o Fernando Pedreira e o resto da redação. Depois disso, houve um turbilhão de emoções. Só me lembro de que, muito mais tarde, já quase meia-noite, estava no Avenida Danças, um puteiro no centro de Sampa, levado pelo Carlos Conde e pelo Oswaldo Martins. Sentia frio, pois ainda estava com a roupa molhada. “O que estamos fazendo aqui” – perguntei. Os dois se encararam e um deles – não lembro mais quem − respondeu: “Bom, você ficou um tempo preso. Deve estar precisando de uma mulher. Escolha. A gente paga.” Acontece que eu só queria uma roupa quente e seca e uma cama para dormir. A luxúria daquele Natal ficou no cabaré. Tinha sido uma noite de intensas emoções. O Conde me levou para casa dele e eu apaguei num canto. No dia 24, encontrei meu irmão Nívio e descemos para Santos. Passamos na casa de minhas tias e nunca vou me esquecer da emoção da Serafina quando me viu: “Toninho, você está bem? Eles te fizeram mal, te bateram?” Em resposta, mostrei-lhe minhas mãos, ainda cheias das marcas de sangue pisado provocadas pela palmatória. Quando chegamos na casa do meu pai, não havia ninguém. Nem comida pronta. Ele tinha saído para passar a noite de Natal na casa da nossa irmã e não tínhamos o endereço. A ceia de Natal foi um frango assado de padaria. Mas foi uma das noites mais emocionantes de minha vida. Eu estava em liberdade.

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