Edição 1.476 página 3 De Londres, Luciana Gurgel Para receber as notícias de MediaTalks em sua caixa postal ou se deixou de receber nossos comunicados, envie-nos um e-mail para incluir ou reativar seu endereço. Em 2023 foram registrados 1.463 feminicídios no Brasil − uma absurda média de quatro por dia, sem contar os casos de abuso doméstico que não resultaram em mortes e episódios de violência que ficaram entre quatro paredes. A maioria nem chega à imprensa, tamanha a banalidade desse tipo de crime. Mas os que chegam nem sempre são noticiados da forma mais sensível e cuidadosa, afetando a reputação da vítima à punição do autor. A jornalista e escritora britânica Michelle Rawlins, que leciona jornalismo na Universidade de Sheffield, está fazendo uma pesquisa sobre a forma como vítimas e agressores são retratados na imprensa. O estudo tem a participação de duas organizações não-governamentais de proteção feminina do Reino Unido: Women’s Aid e Independent Domestic Abuse Service. A partir de entrevistas com vítimas e especialistas, Rawlins faz observações importantes sobre detalhes que nem sempre são levados em conta na correria das redações ou em conteúdo nas redes sociais comentando essas tragédias. Uma das principais é o uso ou compartilhamento de fotos do casal feliz para ilustrar matérias sobre feminicídio ou abuso. Em alguns casos as fotos são capturadas diretamente das contas de mídia digital das pessoas envolvidas ou de seus amigos e parentes. A autora da pesquisa aponta que essas imagens positivas, contrastando com a violência do ato, podem dar a ideia de que o abusador ou homicida era “um cara legal”, causando surpresa sobre como poderia ter feito um ato tão horrível − e influenciando decisões sobre o caso. Entrevistadas disseram que essas fotos criam uma falsa narrativa de como era de fato o relacionamento, “deturpando a realidade da situação”, o que pode alimentar a crença de que o agressor não fez nada de errado. E têm o potencial de reforçar um preconceito arraigado na sociedade: o de que a mulher tem algum grau de culpa pela agressão. Indo além, podem tornar mais Noticiário de abuso doméstico: como fotos e descrições do “casal feliz” podem machucar ainda mais as vítimas ou sua memória difícil acreditar em mulheres que relatam abusos de um agressor que se comporta bem em público e que não tenham sido presenciados por terceiros ou confirmados por pessoas próximas, que na maioria das vezes preferem não se intrometer. Em um artigo sobre sua pesquisa no portal acadêmico The Conversation, Rawlins conta que uma das mulheres sobreviventes de abuso relatou que imagens perfeitas dela e do ex-parceiro fazem com que a vítima se sinta inadequada, como se fosse culpa dela por não tê-lo deixado. Outras mulheres contaram que as fotos trouxeram de volta memórias traumáticas de quando estavam em relacionamentos tóxicos e de risco. Além das fotos, a história contada nos textos e a linguagem utilizada podem igualmente voltar-se contra as vítimas ou contra a sua memória, nos casos de feminicídio. Muitas vezes os abusadores são perfilados como “caras legais”, que nunca pareceram estranhos ou agressivos, impressão corroborada por aspas de vizinhos ou parentes. Mulheres abusadas relataram nas entrevistas a percepção de que homens abusivos são muito hábeis em construir uma imagem positiva para o mundo exterior enquanto maltratam suas vítimas, e isso deve ser considerado em conteúdos sobre abuso doméstico. Em seu trabalho, Michelle Rawlins cita a advogada Ann Olivarius, especializada em agressão sexual, que diz: “Os homens violentos são caras legais. Eles são legais com todos, menos com as mulheres das quais abusam, esse é o ponto principal”. A própria expressão para descrever esses atos pode criar uma impressão errada do que configura um crime. Segundo Rawlins, a Women’s Aid recomenda usar “abuso doméstico” e não “violência doméstica”, para englobar também situações de coerção que não envolvam maus-tratos físicos. Como experiente profissional de mídia, ela admite que a forma de noticiar cada caso deve ser avaliada individualmente, dependendo das evidências disponíveis, e que a imprensa precisa contar as histórias de alguma forma. Mas recomenda que os jornalistas sempre considerem o efeito que as palavras e fotos que escolhem têm sobre as vítimas, sobreviventes e suas famílias. Michelle Rawlins Scott Merrylees
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