Edição 1.476 página 24 − Não sou pai de playboy de fim de semana, disse meu pai, em voz calma, mas de maneira inequívoca, quando pedi o Fusca dele emprestado para sair com aquela princesa morena de longos cabelos negros. − Não sou pai de playboy de fim de semana, repetiu. Meu carro é um instrumento de trabalho, disse, sem subir uma oitava, olhando direto nos meus olhos com aquela serenidade que era uma faceta de sua personalidade. − Mas pai − insisti, quero impressionar uma mina (era como chamávamos as garotas naquele tempo) que acabei de conhecer. − Se o problema é o carro vou eu..., disse encerrando definitivamente a questão. E acrescentou: − Suei muito para ter um carro. Só consegui comprar meu primeiro carro quando você tinha três anos. Na segunda-feira, vou lhe encaminhar para seu primeiro trabalho, e, então, você junta dinheiro para comprar o seu carro e sair com as pequenas (Na juventude de meu pai, as minas eram chamadas de pequenas). Não teve jeito. Fiquei sem o carro e a pequena. Desanimado, resolvi ir jogar sinuca no barzinho da esquina, com irmão e primos. Fiz forfait. Com uma carta de recomendação dele, fui na segunda-feira me apresentar ao jornalista Ismar Buarque, editor de Esportes do Correio da Manhã, um dos grandes jornais do País no século passado, até ser extinto em 1974, ferido mortalmente pela perseguição sangrenta da ditadura militar. Papai trabalhou lá desde os 17 anos, bem antes de se formar em Medicina em 1946, até a última edição do diário. Saí de casa decidido. Coloquei minha melhor roupa e parti rumo à rua Gomes Freire, na Lapa, onde ficava a sede do jornal. Desci do ônibus na esquina, fazia um calor descomunal, típico de fevereiro no Rio, e fui andando devagar, na cabeça toda sorte de caraminholas... borboletas no estômago... Passei direto pela porta do jornal, e mais uns passos adiante, entrei num desses bares de português, e pedi no balcão, onde ficavam aqueles ovos cozidos de cascas coloridas, pedi com a voz trêmula e um frio na barriga, um “Rabo de Galo” (um coquetel que mistura cachaça, Cynar e vermute tinto) para tomar coragem de trocar a idílica praia de Ipanema e os bate-coxas dos sábados pela fumacenta redação de um jornal. Talvez desistisse, não sei. Ato contínuo, sinto alguém bater em meu ombro. Era o Ismar, que me conhecia das minhas idas para me encontrar com meu pai no jornal. O português traz a bebida, coloca o copo à minha frente, e digo, mostrando irritação: − Pedi um café! Um cafezinho! Essa bebida não é para mim! Sou menor de idade. Deve haver um engano... Palavra que foi assim. Até hoje fiquei sem saber se a minha mise-en-scène convenceu meu “chefe”. Tomado o café, subimos para a redação, e logo senti que estava, como se dizia, no paraíso ao ouvir a sinfonia do metralhar nas pretinhas (apelido das grandes máquinas de escrever, todas pretas), do permanente tiritar dos terminais de telex, gritos de alegria com cada novo furo e tensão na hora do fechamento... Ele me levou até a minha mesa, daquelas de aço em que a máquina de escrever saía de dentro, me deu alguns telegramas de agências de notícias e me pediu para “penteá-los”, ou seja, preparar os textos para publicação. Quando estava ocupadíssimo com minha primeira tarefa na redação, ele me chamou e disse que, devido à ausência de um repórter, eu iria ao Maracanã fazer a cobertura de um jogo da Taça do Brasil: Bangu e Bahia. Com mais borboletas no estômago, lá fui todo orgulhoso, na camioneta da reportagem, uma Rural Willys, verde e branco, com a marca do jornal nas portas, na companhia do Luiz Bueno, um dos grandes fotógrafos da imprensa brasileira. De volta à redação, o Ismar, atarefadíssimo com o fechamento, me pediu 20 linhas sobre o jogo. Pus-me a batucar na minha pretinha, com os dois dedos indicadores mesmo (o grande jornalista e autor Carlos Heitor Cony, que na época travava uma batalha contra a censura da ditadura, ali perto escrevia muito rápido com apenas o dedo indicador da mão direita, enquanto segurava o inseparável cachimbo com a mão esquerda), e escrevi, escrevi... queria contar tudo... E ele gritava nervoso,
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