Edição 1.458 página 44 viera da Índia e andava pelas ruas de sari e turbante, os negros eram descendentes de escravos fugidos que montaram aldeias iguais e com os costumes que tinham na África – quilombos guianenses, isso quando nem se falava em quilombo no Brasil e a língua oficial era o holandês. O povão, entretanto, falava uma algaravia, sranam, oficialmente, ou taqui-taqui, na gíria das ruas, que mistura holandês com industani, palavras em javanês, cantonês e expressões inventadas, de língua nenhuma. Tenho certeza de que nem eles entendiam. A matéria, até que consegui. Os camaroneiros da China Comunista (é, naquele tempo eles acreditavam mesmo que eram comunistas) estavam à vista, abastecendo-se no porto. O problema foi quando tentei me hospedar. Eu tinha o nome impronunciável de um hotel escrito num papelzinho, o táxi me deixou na porta e no balcão três pessoas tentaram longamente me atender, sem que eu entendesse coisa alguma, apesar dos gestos, micagens e, pouco mais tarde, da profunda irritação que demonstravam. Como o inglês deles era tão limitado como o do nosso ex-presidente, limitando-se a algo tipo “Tá Okéi, tá?”, comecei a me desesperar. Eis senão quando uma garota que falava ao telefone da ponta do balcão soltou um sonoro “puta que pariu”, na mais escorreita e clara manifestação da “última flor do Lácio, inculta e bela”, o nosso português/brasileiro. É claro que implorei ajuda. Ela deu um sorriso matreiro e explicou o que os balconistas queriam dizer: o hotel estava em reformas, fechado, e apenas três brasileirinhas que trabalhavam como strippers numa boate do mesmo dono estavam ali hospedadas. A menina foi muito gentil, me levou para almoçar num restaurante onde fui apresentado ao kiwi em conserva (na época não havia kiwi no Brasil), passamos o dia juntos, gentilmente comprou uma recém-lançada babáeletrônica para minha filha Flávia, que era pequenininha, e quando voltamos ao hotel para pegar minha mochila, a Polícia estava à minha espera. A exigência, explicada pela garota já então dublê de tradutora-simultânea, é que os policiais exigiam que eu comprovasse que tinha passagem de volta, não fosse um imigrante ilegal, que já não eram bem-vistos, apesar dos EUA ainda não terem inventado o Trump. Eu tinha a passagem de volta, para dali a três dias, mas havia outro problema: os chineses tinham sabido que um jornalista brasileiro estava na área e o procuravam para “dar um jeito no carinha”. O carinha era eu, e se os pescadores me “dessem um jeito”, a Polícia ia ter trabalho, e isso não aprazia os policiais que estavam a fim de outro “trabalho”, pois as brasileiras eram palatáveis, se é que entendi a tradução. Minha “salvadora” resolveu a questão: decidiu que eu ficaria no quarto dela no hotel em obras, onde eu não seria procurado, e para os três dias que faltavam para meu voo ela tinha comida, conversa para jogar fora e... quejandos − que aí, descobri, não era bem uma espécie de peixe. Foram três dias preso no quarto, muita conversa, relatos da história de vida – da dela, no interior do Pará, até os pais descobrirem que não era mais “moça” e a expulsarem de casa – e, noite avançada, conversa cansada, não houve como escapar dos... quejandos. Na volta ao Brasil, como contei a história na redação, ela acabou chegando aos ouvidos da minha mulher e certamente aumentada. Foi o começo do fim do meu primeiro casamento. O que importa é que os chineses não me acharam, houve quem garantisse que o “asilo” me salvou a vida e, passados os três dias a menina me levou ao aeroporto, despediu-se e perguntou: “Quando você volta por aqui?” Idiota, respondi que fora só uma reportagem, não voltaria nunca mais. Ela fez o olhar mais triste que já vi e disse: “Que pena, você deveria ter mentido, assim me daria pelo menos uma pontinha de esperança”. E foi embora, bem devagar. Não lembro nem o nome da garota. Acho que nunca conseguiu vir para São Paulo onde dissera que me visitaria. Restou apenas a lembrança, que veio à tona por causa da frase que De Gaulle não disse, mas que para mim, foi muito importante. Vista aérea de Paramaribo
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