Jornalistas&Cia 1437

Edição 1.437 página 46 que eram enfeitados com penas para as cerimônias finais. Uma caveira ou um fêmur com abundância de penas verdes de papagaio e ararajuba (juba é amarelo em tupi) pareciam bem estranhas, mas bem patrióticas, nessa mistura de verde/amarelo. Conversa vai, conversa vem, o padre me conta que, ao fazer o vocabulário bororo, descobrira nove palavras iguais e com o mesmo sentido de palavras do grego antigo. Ao ver os meus olhos brilharem, me deu uma bronca inesquecível: “Eu sei o que você está pensando, seu jornalista, está imaginando uma manchete dizendo que o padre descobriu que os bororos descendem dos gregos, mas eu não disse, eu não acredito nisso e você não vai escrever esse artigo. Eu sou um cientista, tudo o que sei é que levantei palavras bororos e gregas iguais e com o mesmo sentido. Eu paro aí e não tiro conclusões, tenho apenas um fato”. É claro que jamais escrevi o artigo que ele temia, mas 50 anos depois ainda me intriga a questão. Afinal, o padre morreu em 1977, aos 89 anos, e tenho certeza que nos cinco lustros que viveu após nosso encontro há de ter avançado muito na sua pesquisa. A gramática tupi de Anchieta Voltando ao nheengatu − que quer dizer pouco mais ou menos ‘língua boa’ −, foi a solução encontrada pelos indígenas e depois pelos primeiros jesuítas para cristianizar os índios. Eles usaram como base o tupi, a mais difundida entre as 180 línguas (é incrível, mas é isso mesmo) faladas pelas tribos brasileiras. O tupi era difundido porque quando Cabral chegou por aqui os vários ramos aparentados dos tupis estavam terminando de dominar o litoral do Brasil, do Ceará a Cananéia, derrotando e fazendo refluir para o Brasil Central e para a Amazônia as tribos inimigas, que levaram, porém, o nheengatu como herança, pois hoje essa língua que muitas tribos entendem ou falam é uma das mais comuns na Amazônia, recriando na América o que aconteceu na África. É que a África do Sul atraiu para suas inesgotáveis minas em torno de Joanesburgo trabalhadores vindos das mais diversas tribos a África subsaariana e como ninguém se entendia passou a ser usada uma língua geral comum, acrescida de palavras de outras línguas, tornando-se uma espécie de esperanto local, o swahili. O swahili chegou até nós pelas histórias de Tarzan, que nas revistas em quadrinhos usava vários termos swahili. No Brasil, como os portugueses ‘línguas’, isto é, que falavam tupi, eram poucos, o padre Anchieta produziu em apenas seis meses uma gramática tupi (da qual hoje restam apenas três exemplares no mundo), baseada no modelo estrutural do latim. Ao contrário dos demais missionários e dos evangélicos, os jesuítas não tentaram substituir, mas ‘acrescentaram’ a cultura cristã às crenças dos índios. Quando prisioneiro dos tamoios, em Bertioga, Anchieta combatia a tentação representada pelas índias peladas escrevendo poemas religiosos na areia. Um deles, que chegou até nós, começa com ‘Tupãsi porangeté’ (Mãe de Deus muito formosa) e é importante notar que Deus não é chamado de Pai, Jeová ou qualquer nome judaicocristão, mas de Tupã, o nome do maior Deus dos índios. Com o tempo e sendo os brancos minoria em São Paulo, o português foi sendo quase esquecido, ao ponto de estudiosos garantirem que até meados do século XVIII a língua falada em São Paulo era quase exclusivamente o tupi. A prova é que um enviado de Lisboa que precisou convencer um bandeirante paulista a usar seu ‘exército’ para lutar no Nordeste, queixou-se a El Rey de que tinha que usar um intérprete para falar com o bandeirante, que não dominava o português. A carta desse português deve ter impressionado o monarca em Lisboa, pois em 1758 foi baixado um decreto tornando o português a língua oficial na colônia e proibindo o uso do tupi. Atualmente não se fala tupi em São Paulo, a não ser os índios mais velhos da pequena aldeia remanescente no Jaraguá, mas o tupi deitou raízes na pauliceia. Tanto é assim que um comediante carioca que passou as férias em São Paulo comentava, ao voltar a Copacabana que “São Paulo é um pouco estranho, pois há lugares chamados Anhangabaú, Anhanguera, Itaquaquecetuba, Inhambu, todos batizados por um índio fanho”. Padre Anchieta quadro de Benedito Calixto, acervo do Pateo do Collegio Pág.1

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