Jornalistas&Cia 1396

Edição 1.396 página 26 ainda vivemos. Ou seja, com poucos ganhando muito e muitos ganhando pouco, numa clara divisão de classes, reforçada pela péssima distribuição de renda, a insatisfação das massas menos favorecidas pode ser o combustível que alimentará um incêndio nacional. – Já há indícios de que isso possa ocorrer em breve? –, perguntei. – Em curto prazo creio que não. As classes sociais mais baixas ainda parecem aceitar esse status quo e a nação me parece, de momento, viver certa estabilidade políticoideológica. Todavia, a continuar a letargia dos que mandam, numa clara demonstração de que não se importam com os enormes estragos que resultarão de seus equívocos, esse comportamento pode estar levando à construção de um ambiente propício à supremacia do caos e a um desastre que se tornará inevitável. Basta que algum aventureiro, com um discurso recheado de falso patriotismo e com boa capacidade de convencimento, venha a acender o rastilho que levará a uma hecatombe capaz de destruir tudo o que conquistamos de bom. Não sei se a mão que irá riscar esse fósforo será a de alguém confessando ideologia de direita ou de esquerda, se civil ou militar, mas a história das repúblicas na América Latina está repleta dos exemplos de desastres e um desses pode estar à nossa espreita. Os momentos mais importantes, no entanto, além da entrevista com o sumo pontífice e o acompanhamento de sua viagem, foram também aqueles que vivi com gente de várias classes sociais, de trabalhadores mais humildes a empresários donos de grandes fortunas. Em Ciudad Guayana – uma espécie de área metropolitana composta por Puerto Ordaz, São Félix e outras cidadezinhas às margens do rio Caroní –, Óscar Robledo foi uma dessas pessoas. Bem sucedido no comércio, era patriarca da família que me hospedou em um casarão colonial em Villa Alianza, numa área arborizada chamada de Dos Ríos – ela fica entre o Caroní e o Orinoco, os dois maiores da região. Confesso que nunca havia visto tantas mansões como aquelas, nem mesmo no Morumbi, em São Paulo. Foi assim, naquele oásis, e pelas palavras de meu anfitrião, que descobri a Venezuela rica, diferente da pobre que conheci em Santa Elena, na fronteira. Aquela, como me disse Robledo, onde poucos se beneficiavam dos bilhões de dólares que entravam nos cofres do governo, resultantes das exportações de commodities. Nessa época, diariamente eram embarcados para o exterior milhões de barris extraídos de suas imensuráveis jazidas de petróleo e outras milhares de toneladas de minérios brutos ou beneficiados na maior siderúrgica da América Latina, Sidor (Siderúrgica do Orinoco), hoje em frangalhos e totalmente sucateada, assim como se deu com a extração de óleo cru, que não chega a um quarto da produção dos anos 1980. Esse era um tempo em que a sociedade venezuelana tinha uma das elites mais ricas das Américas. A ponto de Dueña Cármen, esposa de Óscar, subir num Boeing da Avensa (Aviação Venezuelana S.A.) pagando 70 dólares pela passagem de ida e volta e ir fazer supermercado em... Miami!!! Esse era, de fato, um tempo em que bilhões iam mais e mais para dentro do bolso e das contas bancárias de uma quantidade de beneficiados cada vez menor, enquanto a pobreza se alastrava por todos os recantos, atingido a maioria da população de cerca de 15 milhões de almas. Hoje, ao testemunhar daqui de perto, nas barras da fronteira, a realidade que vivem a Venezuela e seu povo, quase um terço dele indo embora atrás de uma vida melhor, como aqueles que se abrigaram e ainda se abrigam em Roraima, releio as palavras de Óscar Robledo e elas me fazem confirmar que, de forma racional, meu velho amigo teve uma dura e clara antevisão do futuro que não demorou muito a chegar. Tornou-se público e notório que o militarismo, igualmente àquele que Lula tenta expurgar da política brasileira, tomou conta de tudo por lá: petróleo, terras, garimpos, mineração e muito mais, inclusive a produção e tráfico de drogas. Para manter-se no poder o ditador Nicolás Maduro entregou a coronéis e generais praticamente quase todos os cargos de comando da elite dirigente – que, além do Executivo, inclui a Assembleia Nacional e Tribunal Supremo de Justiça. Assim, com a democracia sepultada, como previu Robledo, a pátria de Simon Bolivar não tem nenhuma perspectiva de melhora, a qual, num futuro a médio prazo, nos permita acreditar que um dia a Venezuela voltará a ser aquela que conhecemos nos anos 1980. Mansão da família Robedlo arquivo Plinio Vicente Óscar Robledo em 2005 Plinio Vicente

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