Edição 1.381 página 17 Com seus cocões cantando Gemendo no Brasil rural Os carros de boi vieram Das bandas de Portugal Já prontos pra transportar A cana do canavial Primeiro foi na Bahia E depois em São Vicente Os carros de boi moldaram O gosto de muita gente Mas hoje são só lembrança Que guardo na minha mente Nesses carros eu andei e brinquei com alegria Num tempo já distante Que lembro com nostalgia No Nordeste bom de guerra Tem beleza e fantasia Quem tange boi de carro De profissão é carreiro Que leva consigo um cão Do tipo perdigueiro Acompanhado de um cabra Chamado de candeeiro (https://www.youtube.com/ watch?v=IQehVnx_fm8&t) PRECIO SIDADES do Por Assis Ângelo Acervo ASSIS ÂNGELO Esse barulhinho aí é esquisito, não é? Eu ouvi esse barulhinho quando era menino, e ele nunca mais saiu daqui da minha cachola. É o barulhinho do carro de boi chorando, gemendo estrada afora. Qual menino do meu sertão não ouviu esse chorar e viu o lento rodar dos velhos carros de boi? Sim, qual o menino que nunca viu isso? Pois é. Dia de feira, dia de festa, de gente pra lá e de gente pra cá. De gente vinda de tudo quanto é lugar, numa agitação dos infernos! Gente gritando, rindo, moleque chorando, outros vendendo e comprando fosse o que fosse. E à distância, o carro de boi: oooooonnn... Comendo a poeira levantada pelo tropel dos cavalos. Naqueles dias distantes da minha infância, lembro que tinha também os bebuns de plantão de boteco para quem os dias pareciam não passar. Mas, apesar disso, e por issomesmo, o que fica pregado na memória é o chiadinho do carro de boi. Esse chiadinho que arrepia a alma, choroso, é diferente do choro de gente. É umchoro chorado, dorido, diferente de tudo. Um choro que vem de lá de nem sei de onde. Esse chorome entristecia, profundamente. Para ter tristeza e chorar não precisa ser frouxo, não. Cabra macho também chora. Seu Nonômesmo, que era raçudo e tinha lá nas costas uma penca de mortes feitas a bala e faca, um dia, escondido, eu o vi chorar. Aliás, até os bois choram. Choro demais chega a ferir o coração da gente. Uma história de carro de boi e gente Ah! Sim, todo mundo sabe: coração de sertanejo é duro de doer. É calejado, cheio de marcas, que nem seus pés e suas mãos. Notei isso quando cresci. Olha aqui as minhas mãos, tá vendo? Todas cheinhas de calos de tanto amargar o cabo da enxada de sol a sol. Doem. E os pés? Olha aqui. Tudo rachado que nem a terra seca à espera da água do céu que parece nunca vir. Por cá, por essas bandas, falta d´água mata gente e mata boi. Pois é, coração de sertanejo não é mole, não. Quando dá de doer, seu moço, de machucar feito moenda com toras de cana ou aquelas maquininhas de repuxar agave, no muque, ah!, danou-se! E fique certo: o sofrimento é tanto que lembra dor de dente na hora do meio-dia, do pino, sob a danação da seca pesada. É de lascar o cano! Por essas bandas tudo é triste. O nosso andar, a nossa fala puxada, o nosso riso, até o nosso espirro é triste. Pode reparar. Tudo é triste na gente. Menos a esperança. Ah! Essa, não. É tudo que nos resta... Mas que a nossa vidinha por aqui é braba, lá isso é. Daí a tristeza. Deus que me perdoe, mas acho que até ele esquece da gente. Né, não? Mas eu tava falando mesmo era dos carros de boi. Quando os carros de boi param, tudo para. Até o tempo. Eita tristeza danada é a falta do gemido, do choro inacoluto do carro de boi!... Eu sempre quis falar esta palavra: inacoluto. Nem sei o que é inacoluto, nem sei se existe, mas que é uma palavrinha bonita, hein? Lá isso é! Essa história de carro de boi é triste, mas é bonita. Nem sei se pelo carro ou pelos bois. Para os meninos do sertão, o boi não é só um bicho trabalhador, não. É amigo, amigo mesmo! Boa companhia. Bem comparando, é que nem cão e gato na cidade grande. Mas um dia tudo se acaba. Nós, inclusive. E os bois. De morte morrida ou de morte matada, não interessa. Isso é detalhe. Quando o boi morre de morte matada, a sua carne é vendida no açougue. Que fazer? Das duas, uma: ou se morre de barriga cheia ou se morre de barriga vazia. A cena do boi indo pro sacrifício é feia, o moço aí já viu? Ele adivinha que vai morrer, tanto que dos cantos dos seus olhos escorre lágrima. Pode ver. E numa rápida manobra, o carrasco, poft!, dá cabo à vida dele. Tem gente que disfarça, que olha de banda, que não quer olhar. Eu olhei e chorei, comomuitos amigos meus, meninos domeu tempo, de calça curta, de um tempo que já vai longe, e como vai! Jamais vou esquecer o boi entrando nomatadouro, escorregando no sangue de outros bois e caindo pesado, num baque seco, surdo, sem um mugido sequer. O difícil, depois, é achar entre os corpos esquartejados a carne do boi de carro, de estimação, de brinquedo, do boi querido, do boi amigo, do boi quase irmão, do boi que virou calemba, bumbá, mamão. Do boi que virou lembrança, uma dolorosa e triste lembrança no mais fundo de nós.
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